Ele não é João de Santo Cristo e não roubava o dinheiro da caixinha no altar. Mas assim como João, não entendia como a vida funcionava, essa discriminação por sua classe e sua cor.
Um menino nascido no interior do pequeno município de Macajuba, no sertão da Bahia. O interior da cidade que é perto de nada e longe de tudo. Não podia ir à escola, pois nasceu para torrar castanhas de caju e farinha. Quem nasce com uma missão assim não pode perder tempo em sala de aula. O sul precisa comer. Mas contra sua predestinação, frequentou a escola rural primária de Macajuba. Levava horas caminhando até o barraco de pau a pique improvisado, onde a professora aguardava os rebeldes.
Menino da roça, trocava roupas com os amigos pois não tinham condições de ter novas. E isso não o incomodava. Só o que pensava era materializar aquele pedaço de pau que fazia de volante em suas brincadeiras escondidas do pai. E todos riam. Quem ele pensava ser para ter um automóvel? Nem jumento o garoto tinha para transportar suas ambições inalcançáveis.
A casa de pau a pique onde passou a infância. Foto tirada em 2017. |
O menino de Macajuba cresceu. Por meses juntou cada moeda de trabalhos extras capinando o terreno de senhores. No auge da sua juventude largou o calor do sertão que o castigava. Deixou pra trás a família e trouxe na sacolinha a ingenuidade da roça para o lugar onde “tudo acontece”. Veio fugido da vida que o impuseram, mas ele nunca aceitou. Desembarcou em Rio Grande da Serra, onde até o nome da cidade lhe dava calafrios. Era inverno e necessário esperar alguns segundos até que a água da torneira pudesse desempedrar e lavar suas mãos de manhã.
Pegou o trem pela primeira vez e foi aonde o disseram que sonhos se concretizavam: a “capital do Brasil”, São Paulo. Tudo ali era grande.
Começou a trabalhar na limpeza de um hospital. Com o passar dos anos foi percebendo que, assim como no sertão, a cidade grande também trabalhava com sistema de castas. Quem usava branco naquele ambiente nasceu para desempenhar um papel superior na sociedade. E ele teve certeza disso quando perguntou à sua supervisora o que ele precisaria fazer para ajudar aqueles doentes como ela o fazia. A doutora respondeu que ele jamais colocaria aquelas mãos sujas e calejadas em seus pacientes.
O menino de Macajuba, pela segunda vez não se contentou. Ele sabia que seus estudos primários na escola rural do sertão não limpariam suas mãos. Então começou a estudar….
Terminou o segundo grau. Ficou feliz e com isso já estaria muito à frente dos seus colegas do sertão. Arriscou o impensável: vestibular. Não conseguiu a pontuação mínima na redação. Ganhou uma bolsa e entrou para um cursinho preparatório. Pentelhou o professor com inúmeras idas e vindas de correções. Até que entrou para a faculdade de enfermagem.
Limpava chão de manhã, ia para a universidade a noite e começou a pintar quadros nas horas vagas.
Aprendeu a pintar quadros sozinho, pegando desenhos de revistas e replicando. |
Com muito suor ele se formou. Começou a estagiar em ambulâncias destinadas a atender vítimas de acidentes nas rodovias do estado. Logo virou enfermeiro de hospitais particulares do grande ABC. Dobrou os plantões e assim o volante de pau do menino de Macajuba se materializou.
Mas a empolgação com o automóvel durou pouco.
O enfermeiro formado |
Ele não é Forrest Gump, mas assim como Gump calçou um par de tênis e foi. Apenas porque “teve vontade de correr”.
O menino de Macajuba começou a correr por onde fosse. Corria e corria sem parar. 10, 20, 42… 70km de uma vez. Começou a disputar provas e subir em pódios. Passou a dividir seu pequeno quarto alugado com as dezenas de troféus e medalhas conquistadas em corridas por todo o Brasil e no exterior.
Mas ele não deixou o jaleco branco. Suas mãos calejadas e “sujas” o levaram para o centro cirúrgico dos dois hospitais mais respeitados da América Latina: Albert Einstein e Sírio Libanês. E ele desenvolveu uma habilidade ainda não estudada pela ciência de aproveitar seu tempo de sono para treinar.
Disputando a Maratona de Punta Del Leste, Uruguai |
Hoje, o incansável menino de Macajuba, Aurelinalvo dos Santos (conhecido como Naldo), leva sua mensagem de superação por meio de seu trabalho e esporte. Ele continua a sujar as mãos torrando castanhas quando visita a família, mas também as tinge de sangue salvando vidas. Continua correndo contra a determinação da sociedade quanto à sua missão na terra.
Naldo torrando castanhas de caju na casa da irmã, em Macajuba, Bahia. |
Costumo brincar com Naldo, hoje um dos meus melhores amigos, que ele é um ser de luz quase pronto. Ele nasceu com um dom que a vida foi lapidando. O eterno menino de Macajuba sabe viver intensamente, sabe com maestria o que é simplicidade, compaixão, humildade genuína e garra.
Ele não é João de Santo Cristo, Leonado Da Vinci, Forrest Gump ou Mahatma Gandhi, ele é um pouquinho de cada.
Texto dedicado a todos os nordestinos que deixaram suas terras em busca de algo na sonhada São Paulo. Nosso MUITO OBRIGADO por trazer a cultura, o jeito de ser arretado e essa alegria do Nordeste pra perto de nós.
Por Monique Lima
Filomena Tend Tudo, breve em Nova Cruz
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